sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008


O aprendiz

(Daniel Oliveira)


A lua crua. Tempo da fome, da miséria, do suplício dos anjos. O jeito era cada um se virar por si mesmo. Necessário era ser gigante, para a própria conservação da espécie homo sapiens.
Naquele assombro de sustos e surtos de pânico, fazia frio, o ar gelado enfraquecia os ossos, as juntas, os músculos. E o que se tinha de são era a cuca. Pensar, então, era o remédio, o alívio, o escape bem quisto.

- Mário, olhaqui pra mim.
- O que é?
- O que aconteceu com os seus olhos, que estão meio vesgos? Você não é estrábico, é?
- Estou enxergando o senhor perfeito, seu Malaquias. Acho que é impressão sua mesmo.
- E esses seus braços? Eles estão muito raquíticos. Você está magro demais, Mário. Assim fica difícil agüentar a falta. Assim você falece, meu jovem.

Você disparou o coração. Vi sua caveira, Mário. Tive dó, muita dó. Quis lhe dar uns remédios, mas você resmungou umas mentiras, que eram para me enganar. Tudo bem, eu disse. Mas por que você não me havia dito que estava com dor de barriga? Aquela sua típica gemura continuava a me dar um troço esquisito. Desesperei só de vê-lo com manchas vermelhas pelo corpo, esse seu corpo que uns diinhas antes fulgurava todo ele nos moldes de atleta que você nunca fora. Mas até que me entusiasmei um pouco. Era sua boca. Ainda havia carne nela; e seus dentes, por incrível, não haviam caído ainda no chão todo coberto de víboras.
Por um instante, não entendi quando seus gestos se tornaram espanto. A sua voz, um miado rouco. As espinhas de seu rosto e nádegas, que há muito tempo tinham desaparecido, retornaram cada vez mais apimentadas, cada vez maiores e amarelas.

- E essas suas espinhas, Mário? Mas que horror!
- Isso é preconceito, seu Malaquias.
- Preconceito de quê?
- Oras! Preconceito, ué! O senhor está é caçoando de mim.
- O que falo é a verdade. Você espreme e elas ficam assim como estão: feias!
- Eu não agüento ver elas tão amarelinhas. Me dá um trem esquisito aqui nas mãos. Elas ficam coçando... É quase impossível, seu Malaquias. Até que sinto um certo prazer de ver e ouvir o pipoco. Parecem pequenos torpedos. O senhor não imagina a emoção que dá detoná-los...
- Mas a cara fica esburacada depois. Fica pior.
- Não, senhor. Os buraquinhos no rosto passam a fazer parte da personalidade da gente.
- É, você acha. O que peço é que pare com esse vício. Uma hora você vira o Fred.

Você arregalou os dentes para mim, Mário. Tive medo de sua carinha malvada, espinhada, e sei lá mais o quê. Você fez gestos de negação, ficou tremendo, todo nervoso, que nem onça brava. Só bastou um copo com água gelada para o sossego de seus nervos inquietos.

- Seu Malaquias, escutaqui. Eu quero é aprender essa coisa que o senhor diz que é sabedoria. Todos têm isso?
- Nem todos, meu filho.
- Mas então quem tem?
- Os anjos e os homens que acreditam em Deus.
- E só, e pronto?
- Se você não acredita, basta acreditar.
- Quem disse que eu não acredito em Deus? Eu só não falo o nome dele, mas acho que o sinto aqui dentro de mim, no íntimo...
- Você quer dizer na alma, não é Mário?
- Isso mesmo. Estava era tentando me lembrar o nome.
- Você não pode esquecer jamais. Isto pode lhe custar a própria vida.
- Custar a vida... Mas vida não é vida e alma não é alma?
- Acorde desse sono, Mário!
- Estou acordado, não vê?
- Parece difícil você entender o que eu digo, não é mesmo?
- Eu não o entendo ou é o senhor que não me entende?
- Você é uma pedra, Mário!
- E o senhor é o quê? Uma águia, porventura?
- Eu sou a Luz.
- Luz? Pois onde se escondeu o brilho, seu Malaquias? Debaixo da cama?
- Não é essa a luz que digo que sou. O que estou querendo dizer pra você é que sou o responsável de lhe mostrar o caminho certo, o caminho do bem.
- Mas, e Deus? Onde é que fica Deus nessa história, afinal? Aprendi em um livro que Ele é a luz.
- Aí é que está, Mário. Eu sou o seu protetor. Um enviado de Deus.
- O senhor é um anjo, então?
- Que mané anjo, ora bolas!

Jamais esquecerei aquela sua expressão bastante séria. Pensei que você ia desaparecer no ar, consumido pela chama que descia do teto de minha casa. Uma casinha velha, é verdade, mas que suscitou em sua memória momentos incríveis do pobre menino que você era, retraído e meio às voltas com a pederastia. Fiquei um instante enriquecido de sua inocência. Você cheirava a cocô de bebê, e, quieto, num canto do quarto, balbuciava umas palavras meio tortas, sem nexo, que mais se assemelhavam a mugidos de bezerro recém-nascido. Por algum tempo presenciei seus primeiros passos rumo ao conhecimento de que a terra era oval, e não redonda, como diziam os livros. A custo você compreendeu isto. Tive de sacudir você e gritar, com convicção: “Acorda, Mário! Acorda!”. Do contrário, perigoso era eu ficar perto de você e ter que suportar aquele seu ceticismo inocente e imutável.

- Estou com fome, seu Malaquias.
- Mas você não comeu farinha agora pouco?
- Sim, comi. Mas quero comer um pouquinho de terra. Estou com muita vontade. Está saindo água aqui da língua. O estômago está pedindo.
- Você ficou louco, menino! Terra não alimenta, não nutre, não mata fome. Terra faz mal, Mário!
- Concordo, seu Malaquias. Mas não tenho força de conter o desejo. Já disse, o estômago pede. E quando ele pede, o senhor sabe como é, não sabe?.

Então você fez um ritual próprio, que só os santos entenderiam. Nem eu sabia o que fazer na hora, hora de dúvidas, de falta-de-crença. Após uns minutos, você saiu correndo feito um zumbi drogado, e, pedindo licença não sei para quem que estava em sua frente, disse:

- Seu Malaquias, arrume um pouquinho de terra pra mim, vai!
- Acalme-se, filho. Sente-se aqui na cadeira e respire fundo.
- Por favor, arranje terra, terra, terra... Oh, seu Malaquias! Piedade!

E vendo um vaso cheio de terra, no qual estava plantada uma roseira, você não pensou dez vezes. Encheu logo as mãos, olhou desesperado para mim, e consumou o ato.

- Você teve coragem, Mário?!
- Tive de fazer isso, senhor.
- Não precisava.
- Precisava sim.
- E aí, o que sente agora?
- Sinto algo estranho dentro de mim.
- Bem feito, teimosinho.
- Mas não é o que o senhor pensa que é.
- E então?
- Sinto mas é uma alegria disfarçada. Uma alegria que tem medo de se mostrar inteira.

Assustei-me com aquela sua revelação, Mário. Foi como se uma bomba explodisse em minha cabeça. Fiquei atordoado, confesso. Mas depois, com um sorriso seu, fiquei de novo são.

- Você também não quer pimenta?
- Não caçoa, seu Malaquias.
- Desculpe. Estou é brincando. É preciso brincar um pouco em tempo tão amargo e de angústias, meu filho. Fazer coisas que se tem desejo, realizar aquilo que se sonha sozinho ou a dois, na medida do possível...
- E não foi o que acabei de fazer?
- Até compreendo. Mas e a sua vida? Vida é um bem precioso dado por Deus.
- Li uma vez que Ele próprio nos criou a partir da terra. Por isso não vejo mal nenhum em comê-la, seu Malaquias.
- Mas agora você é sangue e carne, Mário. Vê se entenda!
- Da terra à terra, seu Malaquias, e pronto.
- Já chega! Vamos parar por aqui.
- Parar?
- Sim.
- Tudo bem.

Você, Mário, de repente, aquietou-se, calou a voz, ficou com os olhos fixos num determinado ponto para além da janela. No que pensava nem imaginava eu. Sei é que, num momento, seus olhos iam dar em uma mosca que traçava vôos ligeiros pela casa toda. Você começou a querer armar tapas contra ela. Ri um pouquinho, com o canto da boca. Um riso amarelo, sem brilho.

- Mário, isto é feio.
- O quê?
- Isto que você faz.
- Não estou fazendo nada...
- Não brinca, Mário.
- Brincando, eu?
- Ficaria com vergonha se eu fosse...
- Vergonha?! Mas vergonha de quê?
- A mosca, Mário! A mosca! Você está se engraçando com a mosca. Não está querendo comê-la, está?
- Isto é normal, seu Malaquias. Sempre faço. É divertido.

Foi aí que percebi o ser animal que você era. Vislumbrei, vagamente, brumas em derredor de seu corpo. Miríades de estrelas alumiavam sua fronte desvanecida. Fiquei bobo por uns segundos. Estava era impressionado com a magia que o envolvia todo. Você, Mário, progredia muito naquelas lições a que eu já não tinha domínio sobre elas. Você era você, e eu era eu. Cada um no seu vento, cada um no seu abismo. A sua transformação era inevitável: casulo maduro já. Vozes saídas de um beco qualquer vinham sobremaneira ditar em seus ouvidos os princípios do que tinha de ser. E então era , e pronto. A partir daí, eu só ficava a espreitá-lo, todo tímido, sentado sobre os degraus das escadas, com os cotovelos fincados sobre os joelhos, e as mãos, ossudas, amparando a cabeça pesada de uns pensamentos intocáveis.

- Mário, o que você tanto pensa?
- Penso mundos, seu Malaquias. Penso mundos...



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