quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O Equilibrista

(Daniel Oliveira)



Um fio se estica sobre a rua. Vai até o beco, onde se finda o que em toda a vida esperamos. Sânsio sabe das coisas, sabe que não pode cair, não pode ceder. Três ou quatro vezes já pensou em pular fora do fio, mas sempre estanca o desejo na hora H. Ele observa o fio. Esquadrinha. É um fio muito fino. Questão de equilíbrio, de ajuda de Deus. Sânsio segue vagarosamente caminhando, os braços abertos, como quem abraçasse o invisível. Ele olha com constância a sua frente, apenas para além daquele seu alvo que lhe instiga as artérias, que pede para ser alcançado. Às vezes, quando cospe, quase cai. Mas depois se apruma, postura ao revés, bebum. O pior de tudo é quando lhe chegam aos ouvidos as vaias. Sim, as vaias do povaréu que o acompanha em seu trajeto suicida. No meio deste povo não há quem o entenda. Incrível, centrado, Sânsio não se apavora, nem murmura maledicências. O que retruca apenas são uns gestos que alma alguma ali presente compreende – dança e zanza no balé da navalha sob seus pés.
Ele, o homem equilibrista, não olha para os lados, não mostra o rabo do olho nem o dedo obsceno. Sânsio dá mostras de respeito, não zomba. Antes, ignora. Segue. Quer chegar, embora houvesse pessoas que não o quisessem. Uns tantos pulam para verem se alcançam o fio sobre o qual está o homem que equilibra as atitudes. Pulam para tentar cortar o fio com tesouras, dão gargalhadas, gritam em coro:

- Cai, maluco! Cai, maluco!

Sânsio, como toda a vida, não se abala. Mas a bala, a bala passa cortante à superfície dele próprio. Continua, entretanto, íntegro. Dentro dele não existe oco, mantém-se inteiro, cônscio. Ele nem cara feia faz. Apenas, forçado, sorri um sorriso displicente, sem afrontas. Crê que estão loucos, fora desta esfera. Ignora sempre. Continua. Sânsio está vestido, ainda tem roupas que revestem seu corpinho magro. E faz fogo debaixo dele, sua língua para fora, gotejando, a desejar limonada.

- Oh, gente boa, quero seguir avante. Piedade... Zoar não me zoem... – diz ele, como num sussurro.

Súbito, as pessoas param e fazem silêncio. Querem escutar o homem. Querem saber da parte dele o que o faz caminhar sobre um fio de arame farpado, de uma extremidade à outra da rua. Tentam decifrar o mistério que envolve a atitude do persistente homem. Mas nada Sânsio expressa como reação espontânea aos gracejos de toada a gente perversa. Está concentrado. Não pode falar, senão cai, machuca-se, derrotado depois. É certo também que, se cair, será pisoteado, feito em migalhas. Muitos esperam o momento para isto, para o extermínio de seu sonho, de seu swing caiaponiense. Acham que ele não vai demorar a sucumbir-se na apoteótica queda livre de ar a mar (de gente, de monstros...).
Pois mais um tempo, e Sânsio já mostra ares de cansaço, cristal quase já rachado pelos raios indigestos da ira do povo. As suas pernas parecem ficar cada vez mais tontas, gelatinosas. Às vezes vacilam, mas logo se aprumam de novo. Assim mesmo ele vai seguindo, enquanto a multidão embaixo nutre um ódio incompreensível. Talvez por não viverem aquela mesma ousadia, a mesma discrepância com o mundo. O que querem é apenas sacanear com o pobre Sânsio. Apoio não há para ele, senão o de uma criatura pequenez que, deslumbrada, entende por si o propósito daquilo tudo.

- Gosto deste felhadaputa, mamãe.

Os homens de rostos feios e de punhos cerrados retrucam, todos juntos:

- Um maluco! Um maluco! Um maluco ele é! Ele não gosta! Ele não gosta de muié!

Entanto, Sânsio continua – e sempre!- em sua trajetória cheia de meandros. Estava o homem decidido, mesmo agora em meio à chuva de pedras e calúnias. Este o fato. Pedras voadoras de encontro a seu corpo, minguando seu estado íntegro de ternura. Mas ele resiste: um mártir em seu entender próprio.
Ninguém havia que colocasse obstáculos à chuva incessante de pedras e seixos que vinham em sua direção. A criancinha sob ele nada podia fazer senão vislumbrá-lo no cai - não cai.
Providencial Sânsio possuir exímio dom de trapezista. Era hábil, sabia se equilibrar como nenhum outro. Trabalhou durante muitos anos num circo, tinha as manhas. O que não suportava era a dor de ser apedrejado. Não entendia o porquê de tanto escárnio, de tanta rixa contra ele, sujeito simples que jamais ia querer se mostrar por prazer. Sabia também das histórias do Cristo, e isto o confortava sobremaneira, em vista de que em seu modo de ver os matizes da vida cristã, o que ele fazia ali sobre o fio da navalha era algo exemplar.
Sim. Sânsio fora palhaço de circo. E justamente este fato provocava na multidão certa maldade de inveja. Achavam que sua habilidade circense fosse uma afronta às suas faltas de capacidade em fazer alguma coisa que surpreendesse de grande forma. Não toleravam o fato de ver Sânsio homem equilibrado, mais cheio de si, quebrando limites que o tornaria mais tarde um homem santo talvez, para muitos.
E neste lero-lero, zomba-zomba, cai - não cai, pois enfim chega a noite. Quase 24 horas. Sânsio parece dormir de olhos abertos, mas seu inconsciente maneja seus músculos e membros, encaminhando eles rumo ao trilho certo, ao cetro providencial. Há um quê de desordem em seu espírito, ele se vê náufrago de um turbilhão de gentes sem escrúpulos. Falta, porém, poucos metros; ele segue, já coisa difícil de não fazer, inevitável. Ele, Sânsio, não é maluco. É sujeito que enxerga apenas o front que vai além de seu nariz, do seu corpo antes imóvel e imutável.
Finalmente, chegando Sânsio a dois metros da extremidade ofuscada do fio, ele tristemente cai...
Aí a multidão não perde tempo. Era, pois, a chance. Pisoteiam Sânsio, esmigalham sua resistência já arrefecida, explodem-no aos pontapés e pauladas, até que alguém dá alarme de advertência:

- Polícia! Polícia!

Então, em frangalhos, gemendo frio e suando sangue, Sânsio morre, boquiaberto, gotas de sangue dando saltos para o ar, como a quererem chegar ao alvo, tão frio e tão distante...

sexta-feira, 19 de junho de 2009


Palavras que sonham...
Leia e comente no minimural, se possível...
Boa leitura!



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008


O aprendiz

(Daniel Oliveira)


A lua crua. Tempo da fome, da miséria, do suplício dos anjos. O jeito era cada um se virar por si mesmo. Necessário era ser gigante, para a própria conservação da espécie homo sapiens.
Naquele assombro de sustos e surtos de pânico, fazia frio, o ar gelado enfraquecia os ossos, as juntas, os músculos. E o que se tinha de são era a cuca. Pensar, então, era o remédio, o alívio, o escape bem quisto.

- Mário, olhaqui pra mim.
- O que é?
- O que aconteceu com os seus olhos, que estão meio vesgos? Você não é estrábico, é?
- Estou enxergando o senhor perfeito, seu Malaquias. Acho que é impressão sua mesmo.
- E esses seus braços? Eles estão muito raquíticos. Você está magro demais, Mário. Assim fica difícil agüentar a falta. Assim você falece, meu jovem.

Você disparou o coração. Vi sua caveira, Mário. Tive dó, muita dó. Quis lhe dar uns remédios, mas você resmungou umas mentiras, que eram para me enganar. Tudo bem, eu disse. Mas por que você não me havia dito que estava com dor de barriga? Aquela sua típica gemura continuava a me dar um troço esquisito. Desesperei só de vê-lo com manchas vermelhas pelo corpo, esse seu corpo que uns diinhas antes fulgurava todo ele nos moldes de atleta que você nunca fora. Mas até que me entusiasmei um pouco. Era sua boca. Ainda havia carne nela; e seus dentes, por incrível, não haviam caído ainda no chão todo coberto de víboras.
Por um instante, não entendi quando seus gestos se tornaram espanto. A sua voz, um miado rouco. As espinhas de seu rosto e nádegas, que há muito tempo tinham desaparecido, retornaram cada vez mais apimentadas, cada vez maiores e amarelas.

- E essas suas espinhas, Mário? Mas que horror!
- Isso é preconceito, seu Malaquias.
- Preconceito de quê?
- Oras! Preconceito, ué! O senhor está é caçoando de mim.
- O que falo é a verdade. Você espreme e elas ficam assim como estão: feias!
- Eu não agüento ver elas tão amarelinhas. Me dá um trem esquisito aqui nas mãos. Elas ficam coçando... É quase impossível, seu Malaquias. Até que sinto um certo prazer de ver e ouvir o pipoco. Parecem pequenos torpedos. O senhor não imagina a emoção que dá detoná-los...
- Mas a cara fica esburacada depois. Fica pior.
- Não, senhor. Os buraquinhos no rosto passam a fazer parte da personalidade da gente.
- É, você acha. O que peço é que pare com esse vício. Uma hora você vira o Fred.

Você arregalou os dentes para mim, Mário. Tive medo de sua carinha malvada, espinhada, e sei lá mais o quê. Você fez gestos de negação, ficou tremendo, todo nervoso, que nem onça brava. Só bastou um copo com água gelada para o sossego de seus nervos inquietos.

- Seu Malaquias, escutaqui. Eu quero é aprender essa coisa que o senhor diz que é sabedoria. Todos têm isso?
- Nem todos, meu filho.
- Mas então quem tem?
- Os anjos e os homens que acreditam em Deus.
- E só, e pronto?
- Se você não acredita, basta acreditar.
- Quem disse que eu não acredito em Deus? Eu só não falo o nome dele, mas acho que o sinto aqui dentro de mim, no íntimo...
- Você quer dizer na alma, não é Mário?
- Isso mesmo. Estava era tentando me lembrar o nome.
- Você não pode esquecer jamais. Isto pode lhe custar a própria vida.
- Custar a vida... Mas vida não é vida e alma não é alma?
- Acorde desse sono, Mário!
- Estou acordado, não vê?
- Parece difícil você entender o que eu digo, não é mesmo?
- Eu não o entendo ou é o senhor que não me entende?
- Você é uma pedra, Mário!
- E o senhor é o quê? Uma águia, porventura?
- Eu sou a Luz.
- Luz? Pois onde se escondeu o brilho, seu Malaquias? Debaixo da cama?
- Não é essa a luz que digo que sou. O que estou querendo dizer pra você é que sou o responsável de lhe mostrar o caminho certo, o caminho do bem.
- Mas, e Deus? Onde é que fica Deus nessa história, afinal? Aprendi em um livro que Ele é a luz.
- Aí é que está, Mário. Eu sou o seu protetor. Um enviado de Deus.
- O senhor é um anjo, então?
- Que mané anjo, ora bolas!

Jamais esquecerei aquela sua expressão bastante séria. Pensei que você ia desaparecer no ar, consumido pela chama que descia do teto de minha casa. Uma casinha velha, é verdade, mas que suscitou em sua memória momentos incríveis do pobre menino que você era, retraído e meio às voltas com a pederastia. Fiquei um instante enriquecido de sua inocência. Você cheirava a cocô de bebê, e, quieto, num canto do quarto, balbuciava umas palavras meio tortas, sem nexo, que mais se assemelhavam a mugidos de bezerro recém-nascido. Por algum tempo presenciei seus primeiros passos rumo ao conhecimento de que a terra era oval, e não redonda, como diziam os livros. A custo você compreendeu isto. Tive de sacudir você e gritar, com convicção: “Acorda, Mário! Acorda!”. Do contrário, perigoso era eu ficar perto de você e ter que suportar aquele seu ceticismo inocente e imutável.

- Estou com fome, seu Malaquias.
- Mas você não comeu farinha agora pouco?
- Sim, comi. Mas quero comer um pouquinho de terra. Estou com muita vontade. Está saindo água aqui da língua. O estômago está pedindo.
- Você ficou louco, menino! Terra não alimenta, não nutre, não mata fome. Terra faz mal, Mário!
- Concordo, seu Malaquias. Mas não tenho força de conter o desejo. Já disse, o estômago pede. E quando ele pede, o senhor sabe como é, não sabe?.

Então você fez um ritual próprio, que só os santos entenderiam. Nem eu sabia o que fazer na hora, hora de dúvidas, de falta-de-crença. Após uns minutos, você saiu correndo feito um zumbi drogado, e, pedindo licença não sei para quem que estava em sua frente, disse:

- Seu Malaquias, arrume um pouquinho de terra pra mim, vai!
- Acalme-se, filho. Sente-se aqui na cadeira e respire fundo.
- Por favor, arranje terra, terra, terra... Oh, seu Malaquias! Piedade!

E vendo um vaso cheio de terra, no qual estava plantada uma roseira, você não pensou dez vezes. Encheu logo as mãos, olhou desesperado para mim, e consumou o ato.

- Você teve coragem, Mário?!
- Tive de fazer isso, senhor.
- Não precisava.
- Precisava sim.
- E aí, o que sente agora?
- Sinto algo estranho dentro de mim.
- Bem feito, teimosinho.
- Mas não é o que o senhor pensa que é.
- E então?
- Sinto mas é uma alegria disfarçada. Uma alegria que tem medo de se mostrar inteira.

Assustei-me com aquela sua revelação, Mário. Foi como se uma bomba explodisse em minha cabeça. Fiquei atordoado, confesso. Mas depois, com um sorriso seu, fiquei de novo são.

- Você também não quer pimenta?
- Não caçoa, seu Malaquias.
- Desculpe. Estou é brincando. É preciso brincar um pouco em tempo tão amargo e de angústias, meu filho. Fazer coisas que se tem desejo, realizar aquilo que se sonha sozinho ou a dois, na medida do possível...
- E não foi o que acabei de fazer?
- Até compreendo. Mas e a sua vida? Vida é um bem precioso dado por Deus.
- Li uma vez que Ele próprio nos criou a partir da terra. Por isso não vejo mal nenhum em comê-la, seu Malaquias.
- Mas agora você é sangue e carne, Mário. Vê se entenda!
- Da terra à terra, seu Malaquias, e pronto.
- Já chega! Vamos parar por aqui.
- Parar?
- Sim.
- Tudo bem.

Você, Mário, de repente, aquietou-se, calou a voz, ficou com os olhos fixos num determinado ponto para além da janela. No que pensava nem imaginava eu. Sei é que, num momento, seus olhos iam dar em uma mosca que traçava vôos ligeiros pela casa toda. Você começou a querer armar tapas contra ela. Ri um pouquinho, com o canto da boca. Um riso amarelo, sem brilho.

- Mário, isto é feio.
- O quê?
- Isto que você faz.
- Não estou fazendo nada...
- Não brinca, Mário.
- Brincando, eu?
- Ficaria com vergonha se eu fosse...
- Vergonha?! Mas vergonha de quê?
- A mosca, Mário! A mosca! Você está se engraçando com a mosca. Não está querendo comê-la, está?
- Isto é normal, seu Malaquias. Sempre faço. É divertido.

Foi aí que percebi o ser animal que você era. Vislumbrei, vagamente, brumas em derredor de seu corpo. Miríades de estrelas alumiavam sua fronte desvanecida. Fiquei bobo por uns segundos. Estava era impressionado com a magia que o envolvia todo. Você, Mário, progredia muito naquelas lições a que eu já não tinha domínio sobre elas. Você era você, e eu era eu. Cada um no seu vento, cada um no seu abismo. A sua transformação era inevitável: casulo maduro já. Vozes saídas de um beco qualquer vinham sobremaneira ditar em seus ouvidos os princípios do que tinha de ser. E então era , e pronto. A partir daí, eu só ficava a espreitá-lo, todo tímido, sentado sobre os degraus das escadas, com os cotovelos fincados sobre os joelhos, e as mãos, ossudas, amparando a cabeça pesada de uns pensamentos intocáveis.

- Mário, o que você tanto pensa?
- Penso mundos, seu Malaquias. Penso mundos...



Caminhar
(Daniel Oliveira)



Dia cinzento aquele...
Os outros dias respiráveis não lhe condiziam ao seu estado de abafamento.
Quem mais poderia me notar na rua calma e fúnebre? Parecia até que eu ia a algum enterro, quase toda negrume a minha vestimenta, inclusive a cueca (palavra feia esta, sempre achei...). Preta, ela, com um piu-piu amarelo ao centro. Graças ser intimidade minha a cueca. Meus cabelos, como de costume, em desalinho. Havia suor pelo meu rosto severo, pensativo.
Capenga. Ia eu caminhando capenga. Tentei um assovio. Inútil tentar assoviar. Inútil. Havia suor, muito. Um ar de descontentamento com o andar das coisas, das pedras no meio do caminho. Caminho torto aquele, grelhado de espinhos, de dores e horrores. Contudo, havia ainda, incrivelmente, um sorriso nos meus lábios já tomados pela afta.
De por último, algumas coisas saíram bem, outras más. Mas continuar caminhando talvez fosse o remédio eficaz, a panacéia das multidões. Nem dormir mudava o estado de desordem que malucava o pensamento delirante. Dormir só piorava as coisas, mudava tudo em negativo (pesadelos...). E tudo, pois, se metamorfoseava forçosamente num processo de redescoberta dolorosa. Caminhar, então, esquentava o sangue, ocupava o olhar de outras visões. Visões menos difíceis, menos reveladoras. Visões apenas, sem mistificação nenhuma.
O céu, dali então, parecia chorar...
Ou chorava eu, sozinho pela rua tortuosa?
A rua estreita... E eu tão ossudo e cabisbaixa a completava com suspiros idiotas. Também você, sozinho... (eu vi! eu vi!). As coisas poderiam ser diferentes, então. Tudo poderia ser igual à normalidade dos dias, dos anos de uma família completa. Os insetos sem máscaras, os cães, as cobras, as onças pintadas. Todos eles sem o espírito do súbito e traiçoeiro ataque (ausência completa da ameaça enganosa). O amor homem-animal. O ar, enfim, sem fumaça... Normalidade isso.

O Muro

(Daniel Oliveira)

É caminhando sobre o muro que experimento a sensação da dúvida. E você, coisa miúda? Nada mais horrível que cair dele de pernas abertas e ainda dá risadas. Pobre de quem ao menos sobe nele, sob a alegação de querer sentir o perigo, o medo. Coitado. Mal sabe que, para subir, horrorosamente arreganhará as pernas, quem sabe se escorregará também. Já subi várias vezes esse muro. Sim, esse muro aí que separa a minha e a sua casa, esse monte de gelo. Várias vezes escorreguei; várias caí. Rotina me equilibrar sobre sua estreita vereda. Às vezes você também se lança à tentação de subi-lo, em tentativa de querer me derrubar. E olho para você e dou uma risadinha irônica, só para ver se você cai. Que duro é você! Que indomável! Outro dia mesmo o vi sobre o seu, e não meu, bestificado muro, aquele sobre o qual foram afixadas, como proteção doentia, pontiagudas tachinhas, nervosas tachinhas. Súbito, nesta hora, você se embate contra meu peito magro, exasperando palavras de repúdio à minha maneira de ser e de existir. Que eu era um doidivanas, um depravado; que eu era um sem... um sem estrutura! Daí que nossos embates eram imunes às armas de ferro. O corpo era a forma mais humana nossa de contrariar o outro, o espírito dentro do outro. Enfunando o papo, eriçando a crista, avermelhando os olhos, enchendo a boca de baba, mostrando a unha suja e encardida... Tapas e gritos de leão a minha força contra você, ó, meu vizinho incompreensível! Por que aquilo? Por que?! Por que você construiu aquele muro entre a minha casa e a sua? Depois de uma rixa nossa sem sentido, sem madureza. Talvez, também, se meu filho não tivesse pisado em suas flores, aí em seu jardim anêmico, o muro fosse só utopia, ilusão nossa apenas, um tapa ressentido de umas passadas desavenças, as de nossas filhas. Lembra-se? Uma tomando o namorado da outra, uma bagunça, e isso sendo elas tão jovens e você o pivô de tudo, um sufoco para a minha cabeça, para a ordem lógica de nossos lares, nossos quintais. E tem outra coisa também, ó, cínico dissimulado! Deixe de ficar nos espiando por entre as frestas deste muro maldito! Deixe-nos em paz a vida, se assim quer; deixe de malquerenças... Que exemplos estaremos dando a nossos filhos se persistirmos nessa rotatória de vinganças mútuas? Haverá um dia em que haveremos de prestar contas a eles sobre nossos atos. Sufoco isso também, meu hostil companheiro... Sufoco. Até quando? Até quando essa dor de cabeça nas noites frias em que nossos bebês ardem em febre e se sucumbem aos gritos da diarréia? Até quando? Quando não der mais? Quando não mais houver suspiros de nossos filhos em precoces alumbramentos nos cantos dos outros muros, aqueles que fedem urina? Vejo e não consigo acreditar que você, ontem mesmo, retirou o varal que minha amada fixou na extremidade de seu muro idiota! Tenha sensatez, vizinho. Não fique aí parado, deixando passar esse precioso tempo que nos convida a viver mais intensamente a vida. Vamos, derrube esse muro! Vamos, deixe cair por terra todas aquelas nossas intrigas, as hostilidades que esbravejam no interior dos cacos de vidro que se entulham no fundo do meu e seu quintal. Faça o seguinte: antes de pensar qualquer coisa, não pense absolutamente em pensar. Siga apenas o que é certo. Pergunte àquela sua mulher que recentemente conseguiu vencer o câncer. Ela tem força. Tem garra! Ainda não sei porque ela não o impediu de cometer tamanha loucura. Mas também, em fase de convalescença, naquela cadeira de rodas... Talvez por isso que as coisas por aí se desandaram. O equilíbrio de sua mulher supera o seu, meu caro. E em muito. Peça a ela uns conselhos, favor. Não ignore o desejo maior de seus filhos, eles que outrora se esbaldavam de alegria nas festivas noites dos encontros amistosos com meus filhos. Certamente não vêem a hora de poderem transpor esta barreira que agressivamente lhes matara a vida tão jovial, a vontade de colocar para fora suas fúrias adolescentes, suas expectativas, suas angústias... Jogue fora o delírio da dor de seus anjos que em seus ouvidos choram e se lance agora mesmo ao puro ar atmosférico da família. Viva a família, meu caro ser bendito e às vezes muito cruel. Não mais quero lhe maldizer. Antes, pretendo apertar-lhe a mão com a firmeza de quem reata um coração partido pelo raio da torturante incompreensão. Quero, sim, dizer-lhe palavras que possam provocar em você dores necessárias ao entendimento. Eu sei, vizinho, que sua filha provoca periódicos vômitos atrás deste muro aí. E sei também que ela sofre, pois imagina que vocês não sabem, e que a verdade lhe custa sair. Custa-lhe dizer que, se pudesse, já teria mandado passar um trator sobre este muro vil, este vil empecilho à boa convivência. Então, deixe esta sua agonia para quando você estiver sozinho no banheiro, ou em dolorosos pensamentos sobre o vaso. Deixe sair, junto com a transpiração e os seus restos, aquela inveja, aquele sonho já há muito morto, sua ruindade que vocifera sob as axilas, seu jeito torto de vislumbrar as coisas, o espírito de Deus. Faça isso, que certo, neste esplendoroso dia, estarei, eu e minha família, com a mesa pronta, muitos frutos e muito vinho a esperar-lhes a perfeita e doce degustação da união e do amor fraternal. E aí não existirá mais muro nem murro. E a vida vai ser muito mais leve e muito mais agradável do que era outrora...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008


A terra em chamas
(Daniel Oliveira)

Um céu enegrecido se apresentava naquela manhã, com muitas nuvens e um sol ralo. Era um sinal ruim para os mais velhos. Para os outros, especuladores, apenas um sinal de chuva vitalmente esperada. E há muito que não chovia ali, em Torres. Há muito sobre a terra não caía um pingo de água, e seus andantes que por este chão cambaleiam sentem a necessidade de uma geral limpeza.
Ar estranho o deste dia, é o que penso. Absorto olho para além da bela serra azul que se exibe a meus olhos ainda intacta. Uma nuvem negra se assentava sobre seu cume, parecendo um ninho. Enquanto olho magnânimo, imagino seriamente sobre algumas coisas. Lourdes é sim uma mulher que conta muitas estrelas, a minha mulher que me persegue às vezes, que às vezes eu a persigo. Vejo agora que Lourdes está sentada na cadeira de balanço, que revira os olhos dizendo palavras sem nexo, fazendo círculos com o dedo indicador, como a descrever a trajetória das nuvens obscuras que se ajuntavam sobre a serra. Noto esses trejeitos de Lourdes e pouco me comovo. Penso que já estou acostumado, penso muito, sabe, na vida. Penso até demais na vida. Tem horas que deveria mesmo era ficar falando tempotodo a todomundo que estou por morrer, que estou por desistir. Mas me questionariam acerca da sobrevivência de Lourdes “mas e Lourdes, seu Jarvales, mas e Lourdes?!” Olho para ela e extraio alguma força, arranco dela algo seiva, arranco carne também. Por que teria de ser assim? Por que? As nuvens sobre a serra sobremaneira me preocupavam. Sim, porque nunca pousaram sobre ela, nunca a contaminaram com seu atmosférico ar nevoento. Lourdes me encarava e voltava os olhos para a serra, continuava a gesticular. Era essa a forma de me dizer que estava também preocupada, que teríamos de rezar como nunca uns pais-nossos. Realmente, as nuvens que se sobrepunham à nossa terra tinham a aparência de mau-agouro. Manifestavam-se como o prenúncio de um acontecimento que certamente nos atingiria em cheio a crista. Esta era a sensação de meu pai Tião ao vislumbrar nuvem negra que se aproximava da serra tão belamente azul. Pai Tião percebia nas formas das nuvens o aviso de que deveríamos ter cautela, sensibilidade. Sentir a presença do mau para que ele não nos surpreendesse desarmados e entregues à dor era o grito que até hoje se manifesta em nossas veias.
O tempo aquele era espinhoso, e a ordem normal dos acontecimentos se subverteram ao Deus-dará. Vigiar por nossas vidas enquanto tudo parecia vir contra nossa calma era a ordem que necessariamente se incitava a nossos corações mutantes. Vigiar o meu corpo quando o meu corpo rápido se deteriorava representava-se já algo difícil. Agora, imaginar colocar o meu corpo frágil frente a qualquer bala cruel do revoltoso contra o corpo inocente e débil de Lourdes, ah, isso era por demais paixão desmedida a um ser vivente apenas, que gesticulava e murmurava umas palavras incompreensíveis, mas que de alguma forma suscitavam sentido.
Mas até que gosto de ter Lourdes a meu lado, mesmo só na aparência. Às vezes me pego a pensar se realmente ela me ama, se deveras nota que estou aqui para ajudá-la contra o sarcasmo da gente estúpida da cidade, da gente bruta dos arredores daqui de Serra Azul. Sei que alimento cá para mim a crença de que Lourdes vai se libertar, que ainda vai me dizer, conscientemente, que a vida vale a pena sim, que sonhar ainda é possível. Mas aí penso, e as palavras parecem sair pelos poros, que o sentido de tudo é apenas continuar vivendo e respirando, alimentando o corpo de coisa qualquer. Estou embebido de sentimentos tolos, sei. Mas sou eu quem digo isso. Fato é que mil e uma pessoas pensam assim como eu. Pensam às vezes até pior. Quando não se matam, entregam os pontos. Não faço isso, não. De maneira nenhuma. Necessito ver o mundo assim, este emaranhado de nuvens negras, porque senão corro o risco de ficar sentado aqui nesta varanda e achar que tudo está ganho, que a terra está boa e viva. Ainda bem que tenho duas mãos, duas pernas e uma cabeça que ainda matuta. De Lourdes se desfalca a cabeça, que inevitavelmente compromete todo o resto. Entretanto, como disse, a presença dela faz meus braços e minhas pernas terem forças, faz o meu peito se avançar contra a labuta diária do campo. Poderia ser tudo pior. Poderia, sim. Isso penso dia e noite. Isso é que me sustenta a plantar e colher as vinhas do campo. Se não fossem aquelas nuvens negras a se assentarem sobre a bela serra azul de nossos sonhos, fato é que o dia de hoje seria bem melhor, mais agradável, e eu não estaria aqui por horas pensando estas gelatinas.

sábado, 15 de setembro de 2007

A arte não amadurece nem as letras se fecundam senão à custa de aturado e laborioso esforço. (Rui Barbosa)




Lutar com as palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã!(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 8 de setembro de 2007

Besouro
(Daniel Oliveira)

Um ponto negro no meio do asfalto. Um remexer de pernas quase insano. São? Sim, mas na proporção de seu tempo de vida. Quase uma fúria aquele desvencilhar da quentura do asfalto em chamas, uma dor tremenda que penetra as camadas purulentas de uma carcaça quebrantada... Frágil ser, ignóbil ser. Veio à vida faz uns minutos, uma eternidade. Bom que não aprendeu ainda o que é sorte, o que é azar. O asfalto arde sob sua costas, ferve por dentro seu plasma derretido, seus órgãos. Agonia de um besouro lutando para sobreviver só mais um dia, um minuto. Nasceu só, e agora se vê só. Também não imagina sequer o que é amigo. Quem já viu um besouro em estima pela mãe ou pelo filho? São eles seres solitários. Odiados e repulsivos. Dó dá ver este ser roçando a cacunda em superfícies hostis. Desvirá-lo traz, sim, alguma satisfação à alma. Parece sorrir aquele inseto inofensivo quando sente que respira. Vida besta esta, vida breve. Vida de inseto, vida de besouro. Às vezes me sinto um. Quantas vezes, nesta vida, esbravejei contra o mundo? Quantas vezes me encontrei incólume diante do inimigo voraz? Quantas vezes ralei as costas de tanto cair contra os cascalhos da minha rua-infância? Mudos gritos lancei para os céus, clamando à Deus. Sufoco pedir... sufoco. Estou arranhando as costas, anjo. Decúbito, gemo sobre este quente asfalto, até que, sobre mim consigo vislumbrar negra nuvem, e daí, num ímpeto, o sentimento da enxurrada vindo a meu encontro, arrastando-me até o bueiro infernal do esquecimento, até o vazio insignificante da existência animal de que falam alguns homens!

terça-feira, 7 de novembro de 2006

O trieiro

(Daniel Oliveira)

Descalço ele ia andando. Em seu caminho, um trieiro curto, cacos: de vidros, de sonhos, de pesadelos não terminados. Ir adiante sempre. Este seu lema, este seu estratagema. A quem reportar-se? A quem? Ninguém de seu que lhe confiasse os sonhos. Ninguém no chão de minúsculo ser para lhe ser companhia em hora tão sem graça. Dizer o quê, então, sabendo que ouvido algum escutaria suas queixas petrificadas? Como sair do trieiro, se fora dele facilmente se perderia, tonto e domável? Pudesse ao menos voar, sair dali voando, até o cume dos montes de onde se via a beleza do mundo... Delírio isto. Delírio de sua cuca que ardia sob o escaldante sol. Aliás, o sol era a sua companhia bem presente. O sol e seu brilho que machuca. Mas, incrivelmente, ele, o homem que seguia pelo trieiro, não sentia dor alguma senão a dor do espírito. Sim, doía-lhe o espírito. Doía-lhe também outras partes do corpo. Ao caminhar, miragens de um poço imenso de água fria lhe aparecia ao longe. Mergulhar para aliviar a dor no espírito... Isso. Também beber uma água agradável, enterrar-se na areia de temperatura amena. Isso. Também outras coisas mais, que só o momento suscitaria. Indispensável um instante de reflexão acerca do passado. Retroagir a uns passos vacilantes antes dados. Quem sabe um renascer no meio do caminho. Quem sabe uma resolução... Daí que o pobre homem imaginava que tudo era muito difícil, que tudo sobremaneira era inelutável. Viver sem alvo certo, sem rumo certeiro. Dizer e não sentir algo além de tonturas, assumir a dor de ter que respirar um ar atmosférico tão ilógico. Sim, cavar até achar o sentido de ser e não poder, de continuar mesmo extasiado, mesmo um pouco doentio. Sensação estranha a que o pobre homem sentia. Sensação de esperança. Idéia serena de que além do mormaço do cerrado em chamas existe um paraíso, uma bela e farta mesa preparada para ele (e os outros...). Dizia a si mesmo que se chegasse até esse lugar certamente voltaria para contar aos seus. Ruim por demais pensar só em si mesmo. Egocentrismo exacerbado. Mas, será que acreditariam em suas palavras, seu delírio já comprometido pela loucura? Talvez, quem sabe. Quem sabe ao menos uma vez na vida ser reconhecido como o anunciante da nova vida, do novo tempo. Então precisava seguir andando. Seguir sempre, sem pestanejar. Jamais pensar em voltar, porque o trieiro só leva, não traz nunca. Nunca mesmo. Quem o diga as formigas alvissareiras, o boi bandido que foge. O trieiro tem as suas vertigens, o seu cheiro de leite, de capim molhado. Labirinto que sempre se encontra nalguma encruzilhada onde os sonhos se encontram, cheios de esperança. Aquele homem que, chamado Inocêncio, caminhava já um tanto tonto, àquela altura, tinha correndo em suas veias, daí saindo pelos seus poros dilatados, a informação de que era essencial parar um pouco, sentar, deitar um pouco, e, depois, seguir novamente, sempre avante, sempre querendo, sempre dizendo para si mesmo frases bonitas de fortes desejos de quem quer muito alcançar o pé do arco-íris, onde, dizem, está um baú cheinho de ouro, e muitos sonhos...